sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Dos tais é o reino dos céus

A propósito do Dia das Crianças na próxima quarta-feira (12), a revista Ultimato oferece um dos capítulos do livro Uma Criança os Guiará – por uma teologia da criança.

O texto, de autoria do historiador Alderi Matos, resgata o valor da criança na história da igreja cristã. A leitura nos mostra que sua importância é muito maior do que o consumismo pode nos convencer.

Não faz muito tempo que as crianças se tornaram objeto de estudos acadêmicos na área de história. Um pioneiro desse campo foi o medievalista e historiador francês Philippe Ariès (1914-1984). Em seu livro A Criança e a Vida Familiar sob o Antigo Regime (1960), mais tarde publicado com o título Séculos de Infância: uma história social da vida familiar, ele propôs uma tese controvertida — que a criança não existia na mente dos homens e mulheres da Idade Média e que o reconhecimento da infância como um estágio distinto da vida foi uma descoberta posterior ao Renascimento. Essa posição recebeu muitas críticas, que levaram o autor a rever alguns de seus conceitos em obras subseqüentes. De todo modo, como aponta W. A. Strange em seu livro Children in the Early Church (“As crianças na igreja antiga”), Ariès alertou os estudiosos para a possibilidade de que as épocas passadas podem ter tido pressupostos a respeito da infância muito diferentes dos atuais.

Strange observa que na antiguidade havia atitudes ambivalentes em relação às crianças. Os pais certamente amavam seus filhos, mas a angustiosa necessidade financeira podia fazer com que os abandonassem para morrer. As pessoas queriam o melhor para os filhos, mas muitas vezes pensavam neles como animais a serem domesticados e os criavam com extrema severidade. As crianças eram valorizadas; todavia, numa sociedade em que se aceitava com naturalidade a escravidão, elas com freqüência eram objeto de exploração e abuso. Os judeus costumavam ter um conceito mais elevado da vida infantil, dando especial ênfase à educação de seus meninos (ver Dt 6.6, 7, 20-25; Js 4.21-24; Sl 127.3-5; Pv 22.6).

No entanto, foi o cristianismo que ofereceu uma contribuição especialmente positiva nessa área. O autor norte-americano C. John Somerville observa: “Por dois mil anos até o presente, os apelos em benefício dos corpos, mentes e espíritos das crianças têm partido em grande parte de homens e mulheres da igreja”.

Um precedente essencial

Jesus colocou os pequeninos numa posição privilegiada ao afirmar que o reino de Deus “pertencia” a eles e que os adultos só entrariam nesse reino caso se tornassem como crianças (Mt 18.1-4; 19.13-15). Certamente esta foi uma afirmação revolucionária numa época em que as crianças ocupavam um lugar de inferioridade, como também acontecia com as mulheres e os escravos. O Mestre não exerceu um ministério específico junto aos menores, mas, seguindo os padrões culturais do seu tempo, considerou-os como incluídos nas famílias a que pertenciam. Ao ministrar aos adultos, estaria por extensão alcançando também os seus grupos familiares. Além disso, ele não somente demonstrou genuíno interesse pelas crianças, mas exortou os seus seguidores a dedicarem a elas especial atenção e cuidado (Mt 18.5; Mc 9.42). Curiosamente, percebe-se uma atitude diferente nas epístolas do Novo Testamento, pois seus autores encaram as crianças de modo mais convencional: elas eram indivíduos sob a autoridade dos pais, sendo vistas como exemplos de imaturidade e de potencial para crescimento.

As crianças eram parte integrante das primeiras igrejas domésticas não só por causa da sua presença inevitável, mas devido à importante convicção de que pertenciam a Deus e à igreja, sendo, por isso, consideradas “santas” (1Co 7.14). Como tais, elas não eram meras expectadoras passivas, mas deviam ser ensinadas e exortadas junto com os adultos (Ef 6.1-4; Cl 3.20ss). É digna de nota a inclusão das crianças nessas listas de deveres domésticos encontradas no Novo Testamento. Também é marcante o elemento de mutualidade que se observa nesses textos — não só os adultos tinham direitos e deveres quanto às crianças, mas estas também possuíam direitos e obrigações em relação aos seus pais. Desse modo, a família não devia ser uma instituição autoritária, como acontecia tantas vezes naquela época, mas um lugar em que todos os membros pudessem crescer juntos na sua vida comum em Cristo. Portanto, ao chamar a atenção para as crianças, falar delas, curá-las e recomendá-las como exemplos e objeto de cuidados, Jesus transmitiu aos seus seguidores a responsabilidade de dar a elas um lugar central em sua vida comunitária.

Cristãos no mundo pagão

Quando a Igreja ainda era minoritária na sociedade pagã, uma criança cristã ficava mais protegida que as demais do perigo do infanticídio, comum naqueles tempos antigos. A Didaquê, um manual eclesiástico do início do segundo século, determinava de modo enfático: “Não matarás uma criança no ventre, nem matarás um recém-nascido” (2.2). Diferentes autores cristãos também condenavam o abandono de menores e a educação permissiva dos adolescentes. Ao mesmo tempo, curiosamente, os primeiros cristãos não se preocuparam em criar escolas exclusivas para seus filhos, mas permitiram que freqüentas sem instituições pagãs. Eles não queriam formar guetos segregados da sociedade.

Um fenômeno revelador era a participação das crianças nos sacramentos. Os testemunhos mais antigos acerca do batismo infantil são dados por Tertuliano, Hipólito e especialmente Orígenes, no terceiro século, que descreveu essa prática como uma tradição da Igreja recebida dos apóstolos. Mesmo que essa alegação não possa ser comprovada, ela demonstra o alto apreço em que as crianças eram tidas pela Igreja. O batismo de infantes não tinha só o sentido de iniciação e inclusão na comunidade cristã, mas também acentuava a idéia de solidariedade familiar, como se percebe em alguns textos bíblicos (At 16.15, 33; 1Co 1.16). Outros testemunhos antigos nesse sentido são os de Cipriano de Cartago e Agostinho. No que se refere à Santa Ceia ou Eucaristia, a participação das crianças nesse sacramento era comum e não foi contestada nos quatro primeiros séculos da era cristã. Algumas autoridades que a mencionam são Cipriano, as Constituições Apostólicas, Agostinho e escritores da igreja grega ou oriental. Num período posterior, a crescente reverência pelos elementos da Ceia fez com que as crianças fossem afastadas da mesa de comunhão.

Tensões na experiência medieval

No Medievo existiram atitudes contrastantes em relação às crianças, como Daniele Alexandre-Bidon e Didier Lett destacam em seu livro Les Enfants au Moyen Âge (“As crianças na Idade Média”). Por um lado, houve forte ênfase no tema da inocência dos infantes, o que fazia deles seres sagrados e uma espécie de emissários de Deus. Por outro lado, eles podiam ser vistos como perturbadores da meditação ou da vida intelectual dos religiosos.

Atribuía-se o nascimento de crianças deformadas ou doentes a interferências demoníacas ou punição divina. Os nascimentos múltiplos (gêmeos) eram considerados sinais de pecados como adultério e fornicação. Quando os bebês morriam antes de serem batizados, isso causava grande angústia nos pais, pelo temor de que ficassem privados da salvação. A valorização da vida monástica podia levar à ruptura precoce dos laços familiares. Muitas crianças eram enviadas aos mosteiros com seis ou sete anos de idade (os oblatos), como ocorreu com o inglês denominado Venerável Beda, no final do sétimo século, e com a alemã Hildegarda de Bingen, no início do século 12. Em seu livro O Deus da Idade Média, o célebre historiador Jacques Le Goff emite uma opinião interessante. Ele considera que a grande beneficiária do destaque dado à Virgem no período medieval não foi a mulher, mas a criança. O tema da mãe de Deus (Theotokos) e da criança especial a ela associada, o menino Jesus, contribuiu para a promoção dos infantes de um modo geral. O lugar simbólico ocupado pela criança experimentou uma evolução.

Ao mesmo tempo, a Igreja continuou a combater a contracepção, o aborto e o abandono de menores. Os pais carentes que, premidos pela necessidade, quisessem se desfazer de um dos seus filhos, eram incentivados a deixá-lo num local público, como a porta das igrejas, para que pudesse ser recolhido. Na maior parte dos casos, a educação infantil ocorria no âmbito familiar. Além disso, havia as escolas monásticas, paroquiais e episcopais. O bispo francês Teodulfo de Orléans ordenou em 798: “Os sacerdotes mantenham escolas nas regiões agrícolas e nas grandes vilas rurais, e, se os fiéis quiserem confiar-lhes seus filhinhos para aprender as letras, não se recusem a recebê-los e ensiná-los, e os ensinem com muito amor. Não exijam pagamento”. A morte era uma ocasião que também revelava o afeto dedicado às crianças: elas eram sepultadas com tanto desvelo e cuidado quanto os adultos. Muitos epitáfios antigos revelam sentimentos de mais profunda afeição.

A centralidade da família puritana

A Reforma Protestante deu uma contribuição significativa à sociedade ao valorizar o casamento e a família como o contexto divinamente ordenado para a vida cristã. A família protestante era patriarcal, tendo o esposo e pai como o líder inconteste. O ambiente familiar caracterizava-se por afeto, reciprocidade, trabalho e frugalidade, sendo também uma escola de religiosidade e cidadania. Quanto ao lugar ocupado pelas crianças, os puritanos ingleses e norte-americanos foram incomparáveis. C. John Somerville, autor de The Discovery of Childhood in Puritan England (“A descoberta da infância na Inglaterra puritana”), observa que o puritanismo inglês foi uma das poucas épocas em que as crianças se tornaram centrais para a religião. Para esse grupo, a finalidade primordial da família era glorificar a Deus. Assim sendo, os puritanos viam a família essencialmente como uma pequena igreja, onde as devoções e a prática dos preceitos cristãos eram essenciais. Um deles escreveu: “Se queremos que a Igreja de Deus permaneça entre nós, devemos levá-la para os nossos lares e nutri-la em nossas famílias”. Outros propósitos da família eram o benefício da sociedade e a realização pessoal da cada integrante da unidade familiar.

Sob a liderança firme e amorosa do pai e a participação atenta da mãe, os filhos eram objeto de grande interesse. Em sua fé calvinista profundamente bíblica, os puritanos tinham a convicção básica de que seus filhos pertenciam a Deus, que os havia confiado aos seus cuidados. Algumas das advertências puritanas mais solenes voltam-se contra a negligência dos pais em educar apropriadamente sua progênie. Os deveres dos pais incluíam prover as necessidades materiais das crianças, ensiná-las a trabalhar e, acima de tudo, dar-lhes treinamento moral e espiritual. A disciplina era levada a sério, visando restringir as tendências negativas e promover a vida cristã. Na concepção puritana, como nota Leland Ryken em seu livro Santos no Mundo, os filhos eram criaturas decaídas cuja inclinação pecaminosa devia ser redirecionada para Deus e para a bondade moral. Em três aspectos os puritanos anteciparam modernas teorias de desenvolvimento: a importância do treinamento precoce, o ensino mais pelo exemplo que pelas palavras e o equilíbrio entre a severidade e o apoio positivo. O legado dos puritanos se faz sentir até hoje em seus países de origem.

Na longa e multifacetada história do cristianismo, as crianças têm ocupado um lugar de maior ou menor destaque em diferentes grupos, épocas e locais. Obviamente, muitas vezes houve atitudes e comportamentos pouco apreciáveis em relação a elas, notadamente quando pobres e marginalizadas. Todavia, de maneira geral, a contribuição das igrejas no tocante à infância foi mais positiva do que negativa, em comparação com o que ocorria na sociedade ao redor. Certamente o fator preponderante que contribuiu para isso foi, e continua a ser, o exemplo do próprio Cristo, em seus ensinos e em suas ações concretas. O que se requer dos cristãos e das igrejas atuais é que tratem as crianças de dentro e de fora da comunidade de fé de maneira coerente com os valores do evangelho.
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Alderi Matos, doutor em história da Igreja pela Escola de Teologia da Universidade de Boston, é professor do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. É ministro ordenado da Igreja Presbiteriana do Brasil e o historiador oficial dessa denominação.

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