Na história do Universo nunca houve – nem haverá –
traição maior. A criatura que representava a mais magnificente obra de seu
Criador ressentiu-se de que sua glória era apenas emprestada, de que o papel
que lhe estava destinado era o de tão somente refletir a infinita majestade do
Deus que lhe deu o fôlego da vida. Dessa maneira, nasceu no coração de Lúcifer
– e, em última análise, no recém-criado universo moral – o desprezível impulso
da rebelião. Esse impulso originou a insurreição angélica que foi a mais
terrível sedição na história em todos os tempos.
Uma questão preliminar
Por mais importante e original que tenha sido essa
rebelião angélica, as Escrituras não incluem um registro específico do evento.
No Antigo Testamento, Satanás aparece pela primeira vez no relato da queda de
Adão (Gn 3). Ali, no entanto, ele já era o tentador caído que seduziu
os primeiros seres humanos ao pecado. Dessa forma, já no início das Escrituras,
a queda de Satanás é tratada como fato. Mas, por razões que não são
esclarecidas em nenhum lugar, o próprio relato de sua queda está ausente nesse
registro.
Ainda assim, o evento é lembrado duas vezes nos escritos
dos profetas: por Isaías, em meio a uma inspirada diatribe contra a Babilônia
(Is 14.11-23), e, mais tarde, por Ezequiel, quando ele repreende duramente o
rei de Tiro (Ez 28.11-19). Essas duas passagens contam-nos a maior parte do que
sabemos sobre a queda de Satanás.
Entretanto, aqui temos algumas dificuldades exegéticas.
Em ambas as passagens, a menção da rebelião de Lúcifer aparece abruptamente num
contexto que não trata, especificamente, de Satanás. Esse fato levou muitos
estudiosos da Bíblia a rejeitar a idéia de que as passagens se referem a uma
rebelião luciferiana e a insistir que elas focalizam exclusivamente os
governantes humanos das nações pagãs às quais são dirigidas.
Apesar disso, é preferível entender que Isaías e Ezequiel
propositalmente queriam levar os leitores para além dos crimes de reis humanos,
guiando-os até a percepção do grande arquétipo do mal e da rebelião, o próprio
Satanás. Essas passagens incluem descrições que, mesmo levando em conta a
inclinação ao exagero por parte de governantes da Antiguidade, não poderiam ser
atribuídas a qualquer ser humano. O emprego da primeira pessoa do singular (por
exemplo: “Eu subirei...”; “exaltarei o meu trono...”; “me
assentarei...”) em Isaías 14.13-14 refletiria um nível de ostentação
indicativo de insanidade, caso fosse proferido por um mero ser humano, mesmo em
se tratando de um dos monarcas pagãos babilônicos, que a si mesmos divinizavam.
E qual rei de Tiro poderia ser descrito como “cheio de sabedoria e
formosura... Perfeito... nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado...”
(Ez 28.12,15)?
Além disso, a Bíblia ensina explicitamente que a
perversidade do mundo visível é influenciada e animada por um domínio povoado
por espíritos caídos, invisíveis (Dn 10.12-13; Ef 6.12), e que, em sua campanha
traiçoeira e condenável de frustrar os propósitos do Deus verdadeiro, esses
espíritos maus são dirigidos por Satanás, o “deus deste século” (2 Co
4.4).
É característico dos escritores bíblicos fazer a conexão
entre o mundo visível e o invisível, e isso de forma tão abrupta que pega o
leitor momentaneamente desprevenido. Quando Pedro expressou seu horror ante o
pensamento da morte de Jesus, o Senhor lhe respondeu “Arreda, Satanás!”
(Mt 16.23; cf. 4.8-10). De forma semelhante, repentinamente e sem aviso, o
profeta Daniel pula de uma descrição profética sobre Antíoco Epifânio (Dn
11.3-35) para uma descrição similar do Anticristo dos tempos do fim (Dn
11.36-45). Antíoco, governante selêucida no período intertestamentário, precede
o vilão maior que conturbará a terra nos últimos dias. Um salto abrupto e
não-anunciado do mundo político ganancioso, auto-engrandecedor, visível, para o
drama arquetípico que se desenrola num mundo invisível aos seres humanos – mas
que, apesar de não ser visto, deu origem às atitudes denunciadas nessas
passagens –, tal salto não está fora de lugar nas Escrituras.
Finalmente, por trás das conexões feitas nessas duas
passagens pode muito bem estar um tema que freqüentemente retorna nas
Escrituras. Nos tempos primitivos da Terra após a queda, os rebeldes de Babel
estavam determinados a construir “uma cidade e uma torre” (Gn 11.4). A
cidade era um centro de atividade comercial, enquanto a torre representava o
ponto focal do culto pagão. Essa dupla caracterização do cosmo como expressão
de egoísmo (o espírito ganancioso do comercialismo não-santificado) e de
rebelião (a busca por ídolos) ressoa ao longo de toda a Palavra de Deus,
chegando a um clímax em Apocalipse 17-18, onde anjos que se mantiveram fiéis a
Deus anunciam a tão esperada e muito merecida destruição da Babilônia religiosa
e comercial.
É instrutivo notar que enquanto todo o trecho de Ezequiel
26-28 repreende severamente a Tiro – o mais importante centro de comércio e de
riqueza nos dias desse profeta – Isaías 14 denuncia Babilônia, que representa o
centro da falsa religião ao longo de toda a Escritura. Talvez essa
caracterização do cosmo caído como “cidade e torre” – tão importante naquilo
que a Escritura afirma em relação ao mundo em rebelião contra Deus – ajude a
explicar o salto dado pelos profetas nas passagens que consideramos. Quando
contemplavam a cultura de seu tempo, que incorporava perfeitamente um elemento
do cosmo caído, cada um deles se sentiu compelido pelo Espírito superintendente
de Deus a focalizar a rebelião angélica dos tempos primitivos, a qual animava a
rebelião humana que estavam denunciando.
Dessa forma, essas duas críticas severas, que identificam
os espíritos perversos de cobiça inescrupulosa e rebelião espiritual, ajudam a
explicar por que tais espíritos predominam tantas vezes ao longo da história
humana. Os textos referidos, ao mesmo tempo, também antecipam a destruição
profeticamente narrada em Apocalipse 17 e 18.
A linhagem de Satanás
De Isaías 14 e Ezequiel 28 emerge um quadro relativamente
extenso de Satanás antes de sua rebelião.
Sua pessoa: Ele foi o ser mais exaltado de toda a
criação (Ez 28.13,15), a mais grandiosa das obras de Deus, um ser celestial
radiante, que refletia da maneira mais perfeita o esplendor de seu Criador.
Assim, ele apropriadamente era chamado de Lúcifer. Essa palavra vem de uma raiz
hebraica que significa “brilhar”, sendo usada unicamente como título para
referir-se à estrela de maior brilho e cujo resplendor mais resiste ao
nascimento do Sol. O nome Lúcifer tornou-se amplamente usado como título para
Satanás antes de sua rebelião porque é o equivalente latino dessa palavra. Na
realidade, é difícil saber com certeza se o termo foi empregado com o sentido
de nome próprio ou de expressão descritiva.
Seu lugar: Ezequiel afirmou que esse anjo exaltado
estava“no Éden, jardim de Deus” (Ez 28.13). Aqui, a referência não é ao
Éden terreno que Satanás invadiu para tentar a humanidade, mas à sala do trono
em que Deus habita em absoluta majestade e perfeita pureza (veja Is 6; Ez 1).
Ezequiel 28 também chama esse lugar de “monte santo de Deus”, onde
Lúcifer andava “no brilho das pedras” (v. 14).Essas descrições não são
apropriadas ao Éden terreno, mas adequadas à sala do trono de Deus, conforme
representações em outros lugares da Escritura.
Sua posição: Satanás é denominado “querubim da
guarda ungido” (Ez 28.14). Querubins representam a mais alta graduação da
autoridade angélica, sendo seu papel guardar simbolicamente o trono de Deus
(compare os querubins esculpidos flanqueando a arca da aliança – o trono de
Javé – no Tabernáculo ou Templo, Êx 25.18-22; Hb 9.5; cf. Gn 3.24; Ez 10.1-22).
Lúcifer foi ungido (consagrado) por sentença deliberada de Deus (Ez 28.14: “te
estabeleci”) para a tarefa indizivelmente santa de guardar o trono do
todo-glorioso Criador. Ele é descrito como sendo dotado de beleza inigualável,
vestido de luz radiante, equipado com sabedoria e capacidade ilimitadas, mas
também criado com o poder de tomar decisões morais reais. Portanto, a obrigação
moral mais básica de Satanás era a de permanecer leal a Deus, de lembrar sempre
que, independentemente de quão elevada fosse a sua posição, seu estado era o de
um ser criado.
A queda de Satanás
Neste ponto, encontramo-nos diante de um dos mais
profundos mistérios do universo moral, conforme revelado nas Escrituras: “Como
é que o pecado entrou no universo?” Está claro que a entrada do pecado tem
conexão com a rebelião de Satanás. Mas, como foi que o impulso perverso surgiu
no coração de alguém criado por um Deus perfeitamente santo? Diante de tal
enigma, temos de reconhecer que as coisas encobertas de fato pertencem a Deus;
as reveladas, no entanto, pertencem a nós (Dt 29.29). E três dessas realidades
claramente reveladas merecem ser enfatizadas:
Primeiro: a queda de Lúcifer foi resultado de sua
insondável e pervertida determinação de usurpar a glória que pertence
unicamente a Deus. Esse fato é explicitado em uma série de cinco afirmações que
empregam verbos na primeira pessoa do singular, conforme registradas em Isaías
14.13-14. Nisto consiste a essência do pecado: o desejo e a determinação de
viver como se a criatura fosse mais importante que o Criador.
Segundo: Satanás é inteira e exclusivamente
responsável por sua escolha perversa. Nisso existe uma dimensão inescrutável.
Alguns têm argumentado que Deus deve ter Sua parcela de responsabilidade por
este (e todo outro) crime, porque, caso fosse de Seu desejo, poderia ter criado
um mundo em que tal rebelião fosse impossível. Outros dizem que, se Deus
tivesse criado um mundo em que apenas se pudesse fazer o que o seu Criador
quisesse, nele não poderiam ser incluídos agentes morais feitos à imagem de
Deus, dotados da capacidade de tomar decisões reais – e, conseqüentemente, de
escolher adorar e amar a Deus. Há verdade nessa observação, mas também há
mistério. O relato deixa claro que o orgulho fez com que Lúcifer caísse numa
terrível armadilha (Is 14.13-14; Ez 28.17; cf. 1 Tm 3.6), mas nada explica como
tal orgulho de perdição pode surgir no coração de uma criatura de Deus não
caída e perfeita.
No entanto, não há mistério quanto ao fato de que Satanás
é, totalmente e com justiça, responsável pelo seu crime. Ezequiel 28.15 afirma
explicitamente que Lúcifer era perfeito desde o dia em que foi criado, “até
que se achou iniqüidade em ti”. A culpabilidade moral é dele, e apenas
dele. Na verdade, em toda sua extensão, a Bíblia afirma que Deus governa
soberanamente o universo moral e controla todas as coisas – inclusive a maldade
de homens e anjos – para que correspondam aos seus perfeitos propósitos. Mas
ela também ensina que Deus não deve e não será responsabilizado por essa
maldade, em qualquer sentido.
Finalmente, por causa de sua rebelião, Satanás tornou-se
o arquiinimigo de Deus e de tudo o que é divino. Sua queda – bem como a dos
espíritos que se uniram a ele – é irreversível; não há esperança de redenção.
Satanás foi privado da comunhão com o Deus santo de forma final e
irrecuperável. Para ser exato, Satanás ainda tem acesso à sala judicial do
trono do Universo por causa de seu papel de acusador dos irmãos, papel este que
lhe foi designado divinamente (Jó 1 e 2; Zc 3; Lc 22.31; Ap 12.10). Tal acesso,
no entanto, é destituído da comunhão com Deus ou da Sua aceitação. Devido à sua
traição, que foi a mais terrível na história do cosmo, Satanás e seus anjos
somente podem esperar a condenação e a punição eternas (Mt 25.41). (Douglas
Bookman http://www.chamada.com.br)
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